27 setembro 2012

Dois Pontos: A Solidão Amiga




A Solidão Amiga

A noite chegou, o trabalho acabou, é hora de voltar para casa. Lar, doce lar? Mas a casa está escura, a televisão apagada e tudo é silêncio. Ninguém para abrir a porta, ninguém à espera. Você está só. Vem a tristeza da solidão... O que mais você deseja é não estar em solidão...

Mas deixa que eu lhe diga: sua tristeza não vem da solidão. Vem das fantasias que surgem na solidão. Lembro-me de um jovem que amava a solidão: ficar sozinho, ler, ouvir, música... Assim, aos sábados, ele se preparava para uma noite de solidão feliz. Mas bastava que ele se assentasse para que as fantasias surgissem. Cenas. De um lado, amigos em festas felizes, em meio ao falatório, os risos, a cervejinha. Aí a cena se alterava: ele, sozinho naquela sala. Com certeza ninguém estava se lembrando dele. Naquela festa feliz, quem se lembraria dele? E aí a tristeza entrava e ele não mais podia curtir a sua amiga solidão. O remédio era sair, encontrar-se com a turma para encontrar a alegria da festa. Vestia-se, saía, ia para a festa... Mas na festa ele percebia que festas reais não são iguais às festas imaginadas. Era um desencontro, uma impossibilidade de compartilhar as coisas da sua solidão... A noite estava perdida.

Faço-lhe uma sugestão: leia o livro A chama de uma vela, de Bachelard. É um dos livros mais solitários e mais bonitos que jamais li. A chama de uma vela, por oposição às luzes das lâmpadas elétricas, é sempre solitária. A chama de uma vela cria, ao seu redor, um círculo de claridade mansa que se perde nas sombras. Bachelard medita diante da chama solitária de uma vela. Ao seu redor, as sombras e o silêncio. Nenhum falatório bobo ou riso fácil para perturbar a verdade da sua alma. Lendo o livro solitário de Bachelard eu encontrei comunhão. Sempre encontro comunhão quando o leio. As grandes comunhões não acontecem em meio aos risos da festa. Elas acontecem, paradoxalmente, na ausência do outro. Quem ama sabe disso. É precisamente na ausência que a proximidade é maior. Bachelard, ausente: eu o abracei agradecido por ele assim me entender tão bem. Como ele observa, "parece que há em nós cantos sombrios que toleram apenas uma luz bruxoleante. Um coração sensível gosta de valores frágeis". A vela solitária de Bachelard iluminou meus cantos sombrios, fez-me ver os objetos que se escondem quando há mais gente na cena. E ele faz uma pergunta que julgo fundamental e que proponho a você, como motivo de meditação: "Como se comporta a Sua Solidão?" Minha solidão? Há uma solidão que é minha, diferente das solidões dos outros? A solidão se comporta? Se a minha solidão se comporta, ela não é apenas uma realidade bruta e morta. Ela tem vida.

Entre as muitas coisas profundas que Sartre disse, essa é a que mais amo: "Não importa o que fizeram com você. O que importa é o que você faz com aquilo que fizeram com você." Pare. Leia de novo. E pense. Você lamenta essa maldade que a vida está fazendo com você, a solidão. Se Sartre está certo, essa maldade pode ser o lugar onde você vai plantar o seu jardim.

Como é que a sua solidão se comporta? Ou, talvez, dando um giro na pergunta: Como você se comporta com a sua solidão? O que é que você está fazendo com a sua solidão? Quando você a lamenta, você está dizendo que gostaria de se livrar dela, que ela é um sofrimento, uma doença, uma inimiga... Aprenda isso: as coisas são os nomes que lhe damos. Se chamo minha solidão de inimiga, ela será minha inimiga. Mas será possível chamá-la de amiga? Drummond acha que sim: "Por muito tempo achei que a ausência é falta./ E lastimava, ignorante, a falta./ Hoje não a lastimo./ Não há falta na ausência. A ausência é um estar em mim./ E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,/ que rio e danço e invento exclamações alegres,/ porque a ausência, essa ausência assimilada,/ ninguém a rouba mais de mim.!"

Nietzsche também tinha a solidão como sua companheira. Sozinho, doente, tinha enxaquecas terríveis que duravam três dias e o deixavam cego. Ele tirava suas alegrias de longas caminhadas pelas montanhas, da música e de uns poucos livros que ele amava. Eis aí três companheiras maravilhosas! Vejo, frequentemente, pessoas que caminham por razões da saúde. Incapazes de caminhar sozinhas, vão aos pares, aos bandos. E vão falando, falando, sem ver o mundo maravilhoso que as cerca. Falam porque não suportariam caminhar sozinhas. E, por isso mesmo, perdem a maior alegria das caminhadas, que é a alegria de estar em comunhão com a natureza. Elas não vêem as árvores, nem as flores, nem as nuvens e nem sentem o vento. Que troca infeliz! Trocam as vozes do silêncio pelo falatório vulgar. Se estivessem a sós com a natureza, em silêncio, sua solidão tornaria possível que elas ouvissem o que a natureza tem a dizer. O estar juntos não quer dizer comunhão. O estar juntos, frequentemente, é uma forma terrível de solidão, um artifício para evitar o contato conosco mesmos. Sartre chegou ao ponto de dizer que "o inferno é o outro." Sobre isso, quem sabe, conversaremos outro dia... Mas, voltando a Nietzsche, eis o que ele escreveu sobre a sua solidão:

"Ó solidão! Solidão, meu lar!... Tua voz - ela me fala com ternura e felicidade!

Não discutimos, não queixamos e muitas vezes caminhamos juntos através de portas abertas.

Pois onde quer que estás, ali as coisas são abertas e luminosas. E até mesmo as horas caminham com pés saltitantes.

Ali as palavras e os tempos/poemas de todo o ser se abrem diante de mim. Ali todo ser deseja transformar-se em palavra, e toda mudança pede para aprender de mim a falar."

E o Vinícius? Você se lembra do seu poema O operário em construção? Vivia o operário em meio a muita gente, trabalhando, falando. E enquanto ele trabalhava e falava ele nada via, nada compreendia. Mas aconteceu que, "certo dia, à mesa, ao cortar o pão, o operário foi tomado de uma súbita emoção ao constatar assombrado que tudo naquela casa - garrafa, prato, facão - era ele que os fazia, ele, um humilde operário, um operário em construção (...) Ah! Homens de pensamento, não sabereis nunca o quanto aquele humilde operário soube naquele momento! Naquela casa vazia que ele mesmo levantara, um mundo novo nascia de que nem sequer suspeitava. O operário emocionado olhou sua própria mão, sua rude mão de operário, e olhando bem para ela teve um segundo a impressão de que não havia no mundo coisa que fosse mais bela. Foi dentro da compreensão desse instante solitário que, tal sua construção, cresceu também o operário. (...) E o operário adquiriu uma nova dimensão: a dimensão da poesia."

Rainer Maria Rilke, um dos poetas mais solitários e densos que conheço, disse o seguinte: "As obras de arte são de uma solidão infinita." É na solidão que elas são geradas. Foi na casa vazia, num momento solitário, que o operário viu o mundo pela primeira vez e se transformou em poeta.

E me lembro também de Cecília Meireles, tão lindamente descrita por Drummond:

"...Não me parecia criatura inquestionavelmente real; e por mais que aferisse os traços positivos de sua presença entre nós, marcada por gestos de cortesia e sociabilidade, restava-me a impressão de que ela não estava onde nós a víamos... Distância, exílio e viagem transpareciam no seu sorriso benevolente? Por onde erraria a verdadeira Cecília..."

Sim, lá estava ela delicadamente entre os outros, participando de um jogo de relações gregárias que a delicadeza a obrigava a jogar. Mas a verdadeira Cecília estava longe, muito longe, num lugar onde ela estava irremediavelmente sozinha. O primeiro filósofo que li, o dinamarquês Soeren Kiekeggard, um solitário que me faz companhia até hoje, observou que o início da infelicidade humana se encontra na comparação. Experimentei isso em minha própria carne. Foi quando eu, menino caipira de uma cidadezinha do interior de Minas, me mudei para o Rio de Janeiro, que conheci a infelicidade. Comparei-me com eles: cariocas, espertos, bem falantes, ricos. Eu diferente, sotaque ridículo, gaguejando de vergonha, pobre: entre eles eu não passava de um patinho feio que os outros se compraziam em bicar. Nunca fui convidado a ir à casa de qualquer um deles. Nunca convidei nenhum deles a ir à minha casa. Eu não me atreveria. Conheci, então, a solidão. A solidão de ser diferente. E sofri muito. E nem sequer me atrevi a compartilhar com meus pais esse meu sofrimento. Seria inútil. Eles não compreenderiam. E mesmo que compreendessem, eles nada podiam fazer. Assim, tive de sofrer a minha solidão duas vezes sozinho. Mas foi nela que se formou aquele que sou hoje. As caminhadas pelo deserto me fizeram forte. Aprendi a cuidar de mim mesmo. E aprendi a buscar as coisas que, para mim, solitário, faziam sentido. Como, por exemplo, a música clássica, a beleza que torna alegre a minha solidão...

A sua infelicidade com a solidão: não se deriva ela, em parte, das comparações? Você compara a cena de você, só, na casa vazia, com a cena (fantasiada) dos outros, em celebrações cheias de risos... Essa comparação é destrutiva porque nasce da inveja. Sofra a dor real da solidão porque a solidão dói. Dói uma dor da qual pode nascer a beleza. Mas não sofra a dor da comparação. Ela não é verdadeira.

Mas essa conversa não acabou: vou falar depois sobre os companheiros que fazem minha solidão feliz.

(Crônica de Rubem Alves publicada no Jornal Correio Popular de Campinas em 30 de Junho de 2002)


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25 setembro 2012

Olhares Mágicos #60: Caminhos

Por Kleber Godoy

A seção 'Olhares Mágicos' traz a cada semana 5 imagens temáticas para sua apreciação, sendo estas continentes de significados para nós dois, mas que podem também mexer com as percepções, ideias, vontades, gostos, etc. dos visitantes deste espaço. Como na vida encontramos muitos destinos, o tema de hoje trata de Caminhos.






Se desejar ver mais imagens mágicas acesse nosso Tumblr. Até a próxima seleção Olhares Mágicos!

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21 setembro 2012

Sétima Arte Brasil: Orfeu (Cacá Diegues, 1999)

DIREÇÃO: Cacá Diegues;
ANO: 1999;
GÊNEROS: Drama e Romance;
BASEADO EM: peça de teatro de Vinícius de Moraes;
PRINCIPAIS ATORES: Toni Garrido (Orfeu); Patrícia França (Eurídice); Murilo Benício (Lucinho); Zezé Motta (Conceição); Milton Gonçalves (Inácio); Isabel Fillardis (Mira); Maria Ceiça (Carmen); Stepan Nercessian (Pacheco); Maurício Gonçalves (Pecê); Lúcio Andrey (Piaba); Eliezer Motta (Stallone); Mary Sheila (Be Happy); Sérgio Loroza (Coice); Silvio Guindane (Maicol); Castrinho (Oswaldo); Nelson Sargento (Ele mesmo); Cássio Gabus Mendes (Pedro) e Caetano Veloso (Ele mesmo).



SINOPSE: "Orfeu (Toni Garrido) é um popular compositor de uma escola de samba carioca. Residente de uma favela, ele se apaixona perdidamente quando conhece a bela Eurídice (Patrícia França), uma mulher que acaba de se mudar para o local. Mas entre eles existe ainda Lucinho (Murilo Benício), chefe do tráfico local, que irá modificar drasticamente a vida de ambos." (Adoro Cinema).


"Uma tentativa acertada de enquadrar o mito de Orfeu na cultura brasileira, tornando um Orfeu brasileiro filho da periferia e com sua música abrindo um outro caminho além daquele 'único', o da criminalidade. Orfeu e Eurídice são representações fieis aos seus correlatos da mitologia grega, assim como sua história, já os outros personagens brasileiros dizem pouco, ou nada dizem, sobre a mitologia grega. As atuações de Toni Garrido e Patrícia França ficam aquém das interpretações dos atores secundários da trama. Milton Gonçalves e Zezé Motta, sendo os atores não protagonistas que mantém a graça no filme, assim como a emotiva, bela e excepcional música tema. Como história de amor, excelente, nada melhor. Mas como cinema, algo a desejar."

(1: Ruim; 2: Regular; 3: Bom; 4: Ótimo; 5: Excelente)
Jonathan Pereira





"O mito grego de Orfeu e Eurídice é um dos mais lindos (e trágicos, por isso romântico) contos de ficção que conhecemos, mas como se isso não bastasse, Vinícius de Moraes dá sua forma a esta histórica, nos presenteando com uma peça baseada no mito, escrita nos anos de 1950. O filme de Cacá Diegues mostra uma adaptação da peça com excelência em atuação, montagem, figurino e, claro, trilha sonora. Orfeu e Eurídice tentam viver seu amor impossível, mas não impossível por viverem em mundos diferentes, mas sim por chamarem tanta atenção dos outros com seus talentos: o maior poeta e a mais bonita mulher. Por ela ele deixa casa, família e comunidade e por ele ela é capaz de ficar e ali viver: ambos abrem mão de suas vidas individuais para viver uma em casal. Mas no emaranhado da paixão surgem diversos outros personagens: Lucinho, o chefe do tráfico da favela, atraído por Eurídice e com inveja de seu amigo de infância talentoso; a tia de Eurídice, eternamente apaixonada por Orfeu, vivendo e revivendo a amargura de ter sido deixada; e a mãe de Orfeu, que tem sobre ele um controle edípico impressionante, aterrorizada com a possibilidade de perder seu filho para outra mulher. Para ilustrar bem esta bela história de amor, destaque para as atuações de: Zezé Motta, Milton Golçalves e Isabel Filardis. E, claro, para a aparição e música de Caetano Veloso."

(1: Ruim; 2: Regular; 3: Bom; 4: Ótimo; 5: Excelente)
Kleber Godoy





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13 setembro 2012

Olhares Mágicos #60: O Melhor Das Olimpíadas 2012

Por Jonathan Pereira

A seção 'Olhares Mágicos' traz a cada semana 5 imagens temáticas para sua apreciação, sendo estas continentes de significados para nós dois, mas que podem também mexer com as percepções, ideias, vontades, gostos, etc. dos visitantes deste espaço.

Durante o período da realização dos Jogos Olímpicos em Londres, o blog entrou em recesso olímpico e pessoal. Agora, com o término dos jogos e de suas respectivas imagens e homenagens, a partir do próximo sábado o 'O Teatro Da Vida' volta com seu conteúdo e postagens habituais, geralmente três vezes por semana, intercalando postagens dentro das 14 seções existentes no blog.

Espero que o espírito olímpico tenha feito parte, e continue fazendo parte da sua vida, que as imagens selecionadas e postadas nessas última semanas tenha agradado e puderam representar esse momento da melhor maneira possível.

Abaixo segue o vídeo oficial com os melhores momentos dos Jogos Olímpicos de Londres ao som do tema oficial 'Survival" com a banda Muse.


Caso queira ver todas postagens referente aos Jogos Olímpicos De Londres clique aqui.

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